domingo, 14 de agosto de 2022

Homenagem que rendo ao meu melhor orientador.

Há mais de meio século, sem muito alarde, já defendia as pessoas negras contra os abusos racistas. Hoje faço uma reflexão sobre o racismo. Entendo que não é o caso de piedade, porém muito menos, razão para lacração furiosa contra quem a cometeu. Se racismo é crime, que se puna. E ponto final.

O racismo está emprenhado nas pessoas. E isto, pelo menos, está há mais de 56 anos já participa da minha convivência. São situações em que vivi na própria carne. É um preconceito enraizado historicamente não importando a formação educacional ou cultural da pessoa preconceituosa. Talvez naquele tempo a sociedade estava em constante influência do pós 2a. guerra, e o mundo estava com o inconsciente coletivo da raça ariana que o nazismo divulgava. E tanto no Brasil quanto nos EUA, os negros sofreram muitos preconceitos dos representantes da supremacia branca.


Eu, no ano de 1966, ainda sem entendimento social e político, já que tinha apenas 15, adolescente e estudante ginasial, cursando o que hoje chamamos de 1o ano do ensino médio, na época era 1o ano científico. Numa sala com cerca de 25 alunos, tinha entre os colegas em sua maioria brancos, filhos de famílias que moravam no bairro Boa Vista. O colégio Instituto Monsenhor Gonçalves era tradicionalmente respeitado pelo corpo docente com professores bem preparados. Um deles, professor Amaury de Assis, era pai do colunista social, Amaury Jr.


Navegávamos na onda da juventude transviada, Beatles, Jovem Guarda, todos jovens idealistas sem causa, ingênuos reformadores da sociedade. Éramos uma turma heterogênea. Meninos e meninas, brancos, asiáticos, negros, origens sociais de toda sorte. Apesar do colégio ser buscado pela classe média, encontrávamos jovens da elite Rio-Pretense. Embora não fosse política da escola pública, muitos alunos eram de famílias carentes e nem sempre procuravam a escola que era estadual, com acesso à educação gratuita a todo cidadão.


À época era ministrada aula de inglês por um certo professor conhecido pelo nome de Modesto R. (Não colocarei o nome completo por respeito), que como praxe colocava a matéria na lousa, dali seguia suas orientações sobre o tema exposto. E assim era a rotina. De tempos em tempos vinha a prova, quase sempre mensal.


Nesse mesmo período eu fazia cursos particulares das línguas inglesa e alemã. Portanto, era normal que nas aulas, eu dominasse melhor que muitos alunos, a língua inglesa. Pois bem. Chegava o dia da entrega das provas com as notas. A turma do fundão, em sua maioria alunos homens, e uma aluna, Flávia, negra, bem alta e corpulenta, razão de se colocar nas carteiras de trás, recebiam as notas. A todos são atribuídas notas baixas, e para minha surpresa recebo a nota 5. Justo o estudante que fazia curso particular de Inglês. Não havia coerência. Além disso, um sobrinho dele que estava em meio a essa turma, teve nota mais alta.


Passado o susto e inconformado com a nota baixa, dirijo-me ao professor Modesto. Sua resposta é surpreendente. - Porque vocês meninos são atrevidos, fazem muita algazarra e são mal cheirosos. Em seguida, retruco e pergunto sobre a aluna negra, que só ficava ao fundo por ser grande. E aí vem a resposta maldosa e cheia de preconceito. - Porque ela fede. As meninas da frente são perfumadas e educadas. Daí a diferença das notas. Não aceitei a justificativa, retruquei dizendo que aquela comparação suja era baseada nele próprio e fui a diretoria registrar a minha reclamação. Deu o maior BO. A diretora, da. Anita, mulher, portanto, pede explicações ao professor e fica criada a famosa “saia justa”. 


Ilustração de Jean-Jacques Sempé 


Passada a semana, chega o dia com a aula do Sr. Modesto, que entra na sala. Silêncio geral. Ele se encaminha à minha frente, me entrega um pedaço de giz e esbraveja: - Hoje quem dará a aula será você. E fica junto à porta. Não me dei por rogado. Sigo até à lousa e imito os gestos dele. Escrevo o tema do assunto, volto à mesa, e verbalmente altero a nota da Flávia. E permaneço de pé, com um dos braços para trás, gesto que o professor fazia ao aguardar o encerramento da aula. E assim seguiu o episódio da substituição de professor e aluno. 


Semanas depois da minha reação, provocou uma mudança de atitude daquele professor. Tive as notas devidamente restabelecida conforme meu desempenho verdadeiro. A turma do fundão igualmente teve várias notas alteradas conforme a performance de cada um e a Flávia da mesma maneira. A paz e o respeito, pelo menos, retornaram ao ambiente escolar.


Certa vez, quando eu estava caminhando com meu pai, cruzamos com o tal professor Modesto. Como meu pai era um político conhecido na cidade, tinha sido vereador por duas vezes, o professor se dirige ao meu pai e pergunta: - Hatim, este guri é seu filho? Com a confirmação de meu pai, ele diz: - Agora compreendo melhor o comportamento dele na aula. Só poderia ser filho de um político. Ele terá futuro, se ele seguir ao pai. 

Na verdade não reagi daquela forma por ter um pai político, foi pela educação liberal e humanista que tive. Todos são iguais perante a lei e perante a sociedade. 


Esta crônica fiz em homenagem ao meu querido pai pelo legado que me proporcionou. Fico honrado de exercer esse aprendizado desde cedo. Toda honra, pai. Você estará sempre em minha memória e nos meus atos de cidadania.


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