domingo, 3 de julho de 2016

Resgate de atos do passado (1).

Outro dia destes publiquei um post sobre a minha reforma íntima.
Lá narrava várias coisas que cometi e fiz uma espécie de 'mea culpa'. 
Resultado! Até a minha esposa, Nina, disse: – Você pegou pesado contra si mesmo. 
Retruquei, dizendo: – Fui terrível, sim, persegui alunos em nome de uma moralidade exagerada e proporcionalmente desnecessária.

Passados alguns dias, num almoço com amigos, ex-colegas de trabalho, um que leu o post me disse: – Ainda bem que te conheci na fase atual. (risos)
A partir dai resolvi escrever sobre os atos que cometi e as reais consequências deles. Prometo que farei vários relatos, mas inicialmente destaco um dos mais pitorescos nessa nova série de posts, 'Resgates de Atos do Passado'.

Vamos lá. Estamos no ano de 1982, alunos do segundo semestre do curso de comunicações da Metodista. Dentro de minha disciplina, altamente técnica, os alunos não entendiam as aulas teóricas de coisas não palpáveis. Havia um grande desinteresse, principalmente pelas mulheres.
Afinal, na flor da idade, 19 anos, namorado esperando com o carrão lá fora, elas não viam a hora daquela aula chata acabar.

Vieram as provas. Resultado, o público feminino não ia bem. Lembro-me que dei uma dezena de notas 'zero'. No meio das desiludidas, estava Sandra. Morena, alta, bonita, simpática, atrativos de mulheres bem criadas, de pais da alta sociedade da Região do ABC. Nata da nata. Num primeiro momento a estupefação. Zero, professor? O que eu não fiz, perguntavam. Nada, respondia, me dirigindo a elas. Ai, num segundo momento, a crítica ao teor das aulas e a real necessidade de se saber sobre aquela tecnicidade toda.

Conflito geral. Passa-se o tempo, vem as provas finais de semestre e a classe em sua maioria aguardava os exames. Sandra estava lá. Prova dada e notas que se repetiram. Nota zero para ela e alguns alunos menos esforçados.
Veio o semestre seguinte e não mais cruzei com os alunos reprovados. Os que ficavam em recuperação ou dependência, pagavam uma taxa e seguiam os outros semestres normalmente e só voltavam a fazer os exames finais.

Tempos depois fui chamado pela direção e o diretor administrativo, pastor Otoniel, me pede que eu revise a nota de uma aluna de nome Sandra, pois os seus pais eram delegados do trabalho e que poderiam ser mais rígidos com futuras autuações contra a área de RH.
Me neguei e informei que nada mudaria em relação às notas dos alunos reprovados. 
Caso encerrado. 

Continuei a minha saga de professor intransigente. Reprovei muitos alunos. A nota zero faria parte do meu currículo. A fama corria solta.

Anos mais tarde, já era 1985, quando desiludido por lecionar para uma geração desinteressada, peço meu afastamento do corpo docente do antigo IMS, hoje Universidade Metodista. Cumprindo a rotina de um desligamento, sigo para fazer a homologação na Justiça do Trabalho de S. Bernardo do Campo. Ao ser chamado para o atendimento, uma senhora loira me diz: – Sente-se professor Salim, é um grande prazer conhecê-lo! O senhor nem imagina a alegria que terei em homologar a sua saída da Metodista.
Fiquei estupefato! Quem seria essa estranha senhora que demonstrava uma alegria inusitada pela minha demissão? Eis que se apresenta. Sou fulana, mãe de Sandra que o senhor reprovou, dando o primeiro zero da vida dela.
Por causa disso, tive que transferi-la para outra escola e recentemente matriculamos em uma universidade na Espanha. Estamos todos entristecidos com o afastamento da família, etc... 
Hipotequei meus sentimentos pela decepção e assinei a homologação, dando por encerrado este capítulo de minha vida. Quanto sofrimento causei para essa moça e a família.

Levaria para meu túmulo este episódio terrível, onde jamais me perdoaria por tal malfeito que fiz. Mas a vida nos prega muitas peças. 
Eu, depois do afastamento das aulas, num retiro compulsório que fiz, não me afetou profissionalmente, e segui trabalhando num estúdio próprio.

Mais tarde após bons serviços prestados, fui contratado nos anos 90 pela Abras
Lá editava uma revista mensal, a SuperHiper. Como toda empresa, buscávamos competitividade e a ordem era baixar custos aumentando o lucros. A fonte de receita da associação era a Feira Nacional (no Rio de Janeiro), um Encontro de Supermercadistas (em São Paulo) e as 12 edições da revista. 

Teve um período, creio em 96 e 97, produzíamos a revista no Brasil e imprimíamos no Chile, em Santiago. O responsável por esta tarefa era justamente eu.

Minha vida naqueles anos resumia-se em produzir a revista, pegar os arquivos digitais e levar comigo para Santiago. Todos os meses. Um rotina cansativa, pois não era uma viagem de lazer. E quando você viaja a trabalho, a visão não é de um turista qualquer. Não conheci as atrações da bela cidade andina, apenas mais tarde em viagem normal com a família, desfrutei da culinária e paisagens do Chile.

Porém numa destas viagens técnicas, no retorno ao Brasil, em voo fora do horário de pico, com o aeroporto, alfândega desertos, sigo até o Free Shop (Duty Free).
Ao entrar na loja vazia, uma pessoa vem ao meu encontro, gritando, me dá um abraço, e me apresenta como "aquele cara" que havia provocado a sua independência familiar. Era justamente Sandra.

Aquela ex-aluna que eu lasquei um zero na prova final de semestre. Aquela mesma Sandra que a mãe me havia dito que teve de tirá-la da escola e matriculá-la na Espanha. Neste dia, recebi tanto brinde, que não consegui comprar nada. Nem precisava. As moças e os rapazes que lá trabalhavam foram apresentados um a um, através da Sandra, repetindo aquele discurso do qual eu era o tal responsável pela libertação dela.

Neste dia, voltando pra casa, fui no caminho me lembrando de cada momento daquela época da faculdade. Aquele sentimento de remorso por ter sido um professor intransigente, daquela hora em que a senhora da Justiça do Trabalho, a mãe de Sandra, me falava dos males que causei, fiquei pensando: "Puxa vida, fiz o que fiz e libertei uma alma que era aprisionada pelo jugo familiar, libertei uma garota mimada". 
Repetia o ditado me colocando no lugar de Deus, 'aquele que faz tudo certo, mesmo por linhas tortas'. Que legal ser redimido. Ser resgatado. Que legal ser libertado de tão tristes memórias. 

Oi, Sandra, aonde você estiver, que estejas bem com a sua família. Que assim seja, graças a Deus. 

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